Na terça-feira (12), as vozes de 36 Comitês de Bacias Hidrográficas mineiras se ergueram para defender sua autonomia frente à proposta do Governo do Estado de Minas Gerais de redivisão territorial das bacias em 14 Unidades Estratégicas de Gestão.
A vida no planeta Terra se desenvolveu a partir da água – e, sem ela, estamos fadados à extinção. Num momento histórico em que discutimos nossa sobrevivência e nosso impacto neste mundo azul, ninguém mais ignora o papel protagonista que a água exerce na manutenção de todo um ecossistema terrestre que nos mantém vivos.
Consideramo-nos animais inteligentes por termos a capacidade de moldar o ambiente ao nosso redor de forma que ele atue a nosso favor. Da primeira ferramenta até a criação de uma rede global de comunicação instantânea, esta espécie que chamamos de seres humanos usa do próprio meio ambiente para criar e recriar um novo – e ainda mesmo – ambiente.
Todos entendemos a importância da tecnologia na proteção e na evolução da vida humana. No entanto, o que muitos parecem não entender é que não é necessário destruir os recursos ambientais no caminho da evolução tecnológica – mais ainda, é fundamental que os preservemos a fim de que aquilo que nos dá segurança não se volte contra nossa própria existência. A sobrevivência é a finalidade de toda intervenção no meio ambiente. A exploração dos recursos naturais é apenas o meio para garantir essa sobrevivência. E, na raiz de tudo, está o recurso mais importante, sem o qual não há nem vida: a água.
É por isso que muitas pessoas empenham suas forças na proteção da água. Os Comitês de Bacias Hidrográficas são mais um exemplo do engenho humano colocado a serviço da proteção e do progresso da vida. Formalizados no Brasil através da Lei 9433 de 1997, os CBHs materializam e organizam uma luta, cuja origem não se pode datar, pela proteção da água e, consequentemente, pela nossa existência. Marcus Vinícius Polignano, presidente do CBH Rio das Velhas, lembra que a água não é apenas um recurso. “Rios não são meros elementos geográficos – eles têm nome, história e pertencimento. E nós não estamos aqui para negociar pertencimento”. Assim se iniciou a fala dos CBHs mineiros através da voz de Polignano na Audiência Pública na Assembleia Legislativa.
Uma pergunta que pode surgir neste momento é: por que foi necessário que os comitês lembrassem isso ao nosso poder público?
Veja as fotos da audiência pública:
Em nome de um estado eficiente, o Governo de Minas Gerais, através do Conselho Estadual de Recursos Hídricos, elaborou o que foi nomeado de “Modelagem Institucional Ótima” para a gestão das águas mineiras. A deliberação normativa, baseada no Plano Estadual de Recursos Hídricos (PERH), possui apenas três artigos, o primeiro, divide o território de Minas Gerais em Unidades Estratégicas de Gestão da água; o segundo, decide que “as diretrizes e aplicação dos instrumentos de gestão se dará no âmbito da Unidade Estratégica de Gestão – UEG; e o seguinte, fixa o início de vigência dessa nova forma de gestão na data da publicação – que se pretendia em 21 de maio deste ano, não fosse o pedido de vistas que membros de CBHs mineiros pleitearam.
Polignano chama a atenção para um contraste extremo: enquanto o PERH possui cerca de 700 páginas, a deliberação normativa, que seria colocada em prática pelo Governo de Minas à revelia dos comitês, possui três artigos (na prática, dois) e um mapa que desconsidera a organização dos CBHs baseada na natureza de uma bacia hidrográfica – um rio principal e seus afluentes.
O revestimento da “modelagem ótima” está coberto com o verniz da eficiência, mote principal do atual governo. Na apresentação do Sisema – Sistema Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos, as justificativas apresentadas giram em torno da alegação, feita pelo governo, de que o os recursos financeiros gerados pelo uso da água são utilizados “em atividades meio que não refletem em resultados finalísticos na mesma proporção” – trocando em miúdos: os CBHs não estariam utilizando o dinheiro para a finalidade de manutenção dos recursos hídricos.
Retirando-se esse verniz, porém, o que se descobre, em primeiro lugar, é que o mapa de divisão das UEGs, baseado no mapa presente na PERH, foi construído dentro de uma lógica de exploração econômica, e não de preservação da organização natural das bacias hidrográficas. As seis “Regiões de Gestão” delimitadas, que abrigariam as 14 UEGs, levam nomes como “potencial de exploração mineral” (norte de Minas), “potencial de expansão da cana de açúcar” (oeste e triângulo mineiro), “adensamento controlado” (noroeste), entre outros.
Ricardo Correia, representante do Vale do Mucuri, se revolta com o que está escrito na apresentação do Sisema: “uma das características da região de ‘adensamento controlado’ é a região de ‘baixo potencial social’. Sabiam que vocês do Mucuri, do Jequitinhonha, são pessoas de baixo potencial social? Isso é um absurdo! Ainda diz que é uma região com ‘alto déficit hídrico’ e que deve se buscar ‘critérios menos restritivos de outorga’. Ou seja, o viés econômico é a base dessa territorialização”.
E, em segundo lugar, o que os CBHs destacaram é que não há como investir em atividades meio, como alega o Sisema, quando o Estado de Minas tem, sistematicamente, contingenciado os recursos financeiros destinados por lei aos CBHs. Antônio Eustáquio Vieira, mais conhecido como Tonhão, representante do CBH Paracatu, dirigiu-se ao Francisco Chaves Generoso, promotor de justiça e coordenador especial de Meio Ambiente do Ministério Público, solicitando ao órgão que verifique o contingenciamento. “Nós temos um recurso contingenciado que é dos comitês que é de milhões de reais. O comitê que eu presido hoje funciona com apoio do Igam nos deslocamentos, com apoio de manutenção com um funcionário cedido e mais uma vaquinha que fazemos pra manter a estrutura. Estamos numa área de conflito extremo e precisamos de recursos financeiros. Todos os comitês precisam”, disse Tonhão.
Os deputados estaduais presentes na audiência, Marquinho Lemos (PT), João Vitor Xavier (CIDADANIA), Jean Freire (PT), Coronel Sandro (PSL), Cássio Soares (PSD), Professor Cleiton (PSB) e Betão (PT), de diferentes vieses políticos, foram unânimes em expressar o espanto em saber do projeto de remodelagem. “Fico tentando imaginar: o que está por trás de remodelar esse sistema? Já ouvi com detalhes que se está copiando a França. Os rios da França são os mesmos que correm em nossas terras? O tamanho da França é o mesmo do nosso estado? Dentro do nosso próprio estado temos particularidades. Será que nós não estamos pretendendo com isso confundir a cabeça em juntar uma região que tem um maior potencial hídrico com uma que tem menos para alguns empreendimentos?”, questiona o deputado Marquinhos, presidente da Comissão de Participação Popular na abertura da audiência.
A participação popular, no entanto, parece ter sido deixada em segundo plano no projeto. Clarissa Dantas, gerente de apoio aos CBHs do Igam e representante do Governo do Estado na audiência, afirmou que “começar pela discussão da gestão participativa é um desafio. Ela precisa ser amadurecida e aprimorada. 36 comitês: conseguimos possibilitar que um ribeirinho participe? Vemos o desafio que é garantir quórum para se iniciar as reuniões. É um locus de discussão que não tem total capilaridade. A proposta do governo não é unir comitês; a proposta do governo é repensar a gestão como um todo, não só os comitês. E, como ela não é só sobre comitês, foi por essa razão que a discussão não começou com os comitês”.
Ricardo, do Mucuri, rebateu a fala do Estado. “É difícil pensar um momento desse quando o Governo do Estado chega aqui e diz que ‘começar pela gestão participativa é um desafio’. Como se vem a um espaço de participação popular, como se vai discutir o Plano Nacional de Recursos Hídricos, que tem como princípio a participação popular, e se diz que não se consegue fazer?”, questionou. Essa decisão do governo de não procurar a participação dos comitês, que é o responsável, entre outras coisas, por mobilizar a sociedade civil, foi bastante criticada. “Fomos surpreendidos por esse processo no Conselho Estadual de Recursos Hídricos, que deu aval para ser discutido naquele dia. Porém, já existia uma minuta, pronta, a ser aprovada naquele momento dentro da câmara técnica. No mínimo uma incoerência que os comitês, que têm mais de 20 anos de história neste Estado, não sejam sequer chamados ao debate e à construção do processo”, deixou claro Polignano.
Além disso, o promotor Francisco Generoso esclareceu que o projeto precisa estar harmônico com as leis que dispõem sobre os recursos hídricos: “Temos uma preocupação bastante relevante em relação à conformidade dessa proposta com as diretrizes e fundamentos Lei 9.433, que é a lei que estabelece a Política Nacional de Recursos Hídricos, na medida em que qualquer iniciativa que venha a contrariar esses fundamentos, essa base estabelecida no regramento geral federal, poderá padecer do vício insanável da inconstitucionalidade.”
Para os CBHs, unânimes em se posicionar contra um projeto que não contou com a participação popular e que parece esconder, por trás do verniz da eficiência, uma lógica de exploração econômica, defender as águas do estado é defender a vida e o desenvolvimento dos mineiros.
“Se o governo fizer o que pretende, vai ficar conhecido como aquele governo que destruiu a história dos comitês de bacias de Minas”, encerra Polignano.
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