As águas não mentem
“Nossos rios estão morrendo de sede e poluição, e, consequentemente, desencadeando uma morte sistêmica”
No ano passado, Minas Gerais sofreu uma das piores crises hídricas de sua história. Mais de uma centena de cidades mineiras decretaram estado de emergência em razão da escassez, que também deixou milhares de pessoas sem acesso à água limpa.
Para Marcus Vinícius Polignano, presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas (CBH Rio das Velhas) e coordenador do Projeto Manuelzão, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), grande parte dessa crise vem… dos rios. Ou melhor, da falta de respeito e compreensão das pessoas em relação à água. “Nossos rios estão morrendo de sede e poluição, e, consequentemente, desencadeando uma morte sistêmica”, alerta ele.
Nesta entrevista à Ecológico, Polignano afirma que as crises hídricas não são uma exclusividade de Minas, e sim “um sinal claro de crise civilizatória”. A Organização das Nações Unidas (ONU) afirma que cerca de cinco bilhões de pessoas em todo o mundo vivem atualmente em áreas de escassez hídrica ao menos durante um mês por ano. As crianças estão entre as mais afetadas: mais de 800, com menos de cinco anos, morrem todos os dias de diarreia associada à falta de água e saneamento, segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF).
O coordenador do Projeto Manuelzão também alerta que a produção de água doce no planeta está no limite de sua utilização. “Estamos consumindo sem preocupação com a reposição”, diz ele. E cita a capital mineira como exemplo: “Toda a água consumida pela população de Belo Horizonte não é produzida na capital e vem de fontes que se encontram em outros municípios. De toda a água de chuva que cai na cidade, nenhuma gota fica aqui ou é armazenada. As chuvas renovam o estoque das águas, mas é o solo que as mantém e armazena”.
Confira:
Qual é a realidade ambiental e hídrica de Minas Gerais e do Brasil hoje?
Estamos hoje numa crise civilizatória. Fizemos uma desconexão. A nossa crise é de rios. Doce, Jequitinhonha, São Francisco, Velhas, Paraopeba, Paracatu e Araguari são alguns dos rios que têm a ver com a nossa história, nossa economia. O Velho Chico e o Doce, por exemplo, já não têm forças para chegar ao mar e as águas salgadas estão invadindo as doces. O Rio das Velhas está entregando cianobactérias para o São Francisco. Nossos rios estão morrendo de sede e poluição, e, consequentemente, desencadeando uma morte sistêmica.
Em 2017, Minas Gerais viveu uma das maiores crises hídricas da sua história: mais de 100 municípios decretaram estado de emergência por escassez hídrica, representado num total de 1,8 milhão de pessoas atingidas. Como as comunidades afetadas estavam fora dos holofotes da grande mídia, “silenciosamente” sofrem com as consequências da escassez. É importante dizer que diferentes bacias hidrográficas foram atingidas, como a do Rio Jequitinhonha, do Pardo, as bacias mineiras do Rio São Francisco, Mucuri, Doce, entre outras. As perdas econômicas, ecológicas e para biodiversidade foram enormes e algumas incalculáveis.
Se não podemos evitar a escassez hídrica, podemos planejar a sua gestão?
Não há como discutir as questões relativas às águas sem discutir território. E o território geoambiental das águas são as bacias hidrográficas.
São elas, de rios do mundo inteiro, que alimentam as populações humanas das cidades e do campo e permitem unir ambiente, ações antrópicas, políticas e econômicas.
São as interações desses fatores que em última instância vão definir a disponibilidade e os usos das águas. É preciso entender que as crises hídricas são sinais claros de uma crise civilizatória.
No fim de 2017, o CBH Rio das Velhas fez uma pesquisa de opinião com usuários de água sobre a cobrança pelo uso de recursos hídricos. Quais foram os resultados?
Primeiro é importante entender melhor o conceito de usuários. A “Lei das Águas” (9.433/1997) define usuários como sendo todos aqueles que realizam captação ou derivação de água superficial e extração de água subterrânea. E dependem de outorga do direito de uso para utilização da água no abastecimento humano, industrial, agrícola, bem como aqueles que lançam efluentes em corpos d’água. Em grande parte, são empresas, mas também podem ser pessoas físicas. Por exemplo: a Copasa é uma usuária de águas, pois capta a água do rio para abastecer a população. No caso do Rio das Velhas, existe uma cobrança pelo uso da água determinada em função da quantidade retirada.
A pesquisa procurou focar nas empresas que são usuárias?
Sim, e que estão no cadastro de outorgas do Instituto Mineiro de Gestão das Águas (IGAM). Primeiramente, tivemos muita dificuldade em localizá-las pelo Banco de Dados, por causa de erros nos registros do sistema. De aproximadamente mil registros, conseguimos contatar cerca de 250. E, embora reconhecendo a importância do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas (CBH Rio das Velhas), a maior parte não sabia informar sobre os projetos desenvolvidos por ele. De certa forma, era um resultado esperado, pois as empresas no seu dia a dia não têm a imensão da gestão das águas. Elas desconhecem de onde proveem a água utilizada no seu processo produtivo – de qual rio, qual a qualidade e quantidade disponível do recurso.
Essa pesquisa nos permitiu entender melhor as dificuldades de comunicação com esse segmento e a necessidade de aperfeiçoar a informação direcionada para o setor. E, com isso, conseguirmos maior apoio e adesão ao sistema.
Em termos de experiências/soluções internacionais, que projetos de revitalização de rios citaria como inspiração ou referência para a gestão das águas em Minas e no país?
Temos experiências internacionais bastante significativas e um novo olhar em relação à gestão das águas. O antigo paradigma de dominação da natureza, que moldou os processos de canalização, retificação de cursos d’água, fomentou a construção de cidades com rios invisíveis e que em grande parte é responsável pelos alagamentos que vivemos nelas em períodos de chuvas. Isso tudo está sendo trocado por um modelo de compreensão e respeito à natureza das águas, uma vez que temos de respeitar a sua força e não encaixotar córregos e rios. Essa lógica tem prevalecido na União Europeia, em especial na Alemanha. Um outro exemplo fantástico é o caso da Coreia do Sul, onde retiraram uma via expressa e retornaram o rio à sua condição natural, fazendo com que a população retomasse o contato direto com as suas águas. E, para não falar que são experiências somente de primeiro mundo, há também o exemplo de Medellín, na Colômbia, antes conhecida internacionalmente pelo narcotráfico e pela violência, e que hoje, pacificada, está fazendo um projeto de recuperação ambiental do seu rio homônimo que corta a parte central da cidade.
Durante o “Encontro Internacional de Revitalização de Rios”, realizado em BH, em novembro passado, o senhor afirmou: “Talvez esse seminário tenha sinalizado isso, que distanciar das águas, dos rios, é um caminho de perdição”. Como fomentar uma maior reflexão, contribuindo para que o ser humano se reconecte à natureza e às águas, em especial no meio urbano?
A humanidade, ao longo de sua história, em especial após a Revolução Industrial e o avanço do capitalismo – que promove hábitos e padrões de consumo altamente destrutivos e predatórios ao ambiente-, veio se desligando da natureza e passou a explorá-la, salvos alguns povos, comunidades e seres que ainda vivem em harmonia com ela. A água passou a ser vista como recurso subordinado à produção, aos interesses dos que a dominam, comandam, monopolizam e que conspiram para subjugar o seu papel para a vida planetária, o que leva, cada vez mais, a disputas contínuas e graves conflitos socioambientais.
Segundo a ONU, dois terços da população planetária, cerca de cinco bilhões de pessoas, vivem atualmente em áreas de escassez hídrica ao menos durante um mês por ano. Por sua vez, cerca de 500 milhões de pessoas vivem em áreas nas quais o consumo de água excede em duas vezes os recursos hídricos renováveis localmente.
A distribuição e o consumo desiguais da água são uma realidade. Isso independe da sua abundância ou escassez em diferentes regiões da Terra?
Sim. As populações de países e regiões mais pobres são mais afetadas e têm maior dificuldade de acesso à água para seu uso econômico, cultural e recreativo. O Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) alerta que mais de 800 crianças, com menos de cinco anos, morrem todos os dias de diarreia associada à falta de água e saneamento. A água contaminada mata mais de meio milhão de pessoas por ano. As populações rurais e urbanas em condições de vulnerabilidade socioambiental, quilombos, povos indígenas e comunidades tradicionais são habitualmente excluídos dos processos decisórios de acesso à água e ao saneamento básico em países como o Brasil.
Que caminhos e saídas vislumbra em relação ao Rio das Velhas?
O Rio das Velhas está tentando refazer a sua história. São 300 anos de degradação do solo, desmatamento e poluição das águas. Pelo Rio das Velhas tivemos o ciclo do Ouro, do Diamante, do minério de ferro, da urbanização e da industrialização.
Todos esses ciclos se somaram e deixaram marcas profundas no leito do rio, na quantidade e qualidade das suas águas. E, ainda assim, o Rio das Velhas vem abastecendo a capital das Minas Gerais. Desde que iniciamos o Projeto Manuelzão, em 1997, tínhamos a dimensão do problema e do desafio. Na época, nem Comitê de Bacia nós tínhamos. A proposta de revitalização é a grande meta.
Construímos dentro do Comitê de Bacia a Meta 2010-2014, e, mais recentemente, o Revitaliza Rio das Velhas”. Já conseguimos vitórias importantes, como o tratamento de 70% dos esgotos de Belo Horizonte e construção de Estações de Tratamento de Esgoto (ETEs). Os peixes voltaram para mais perto de BH, mas a qualidade das águas ainda é ruim e não permite nadar.
Estamos cobrando mais tratamento de esgoto e o tratamento terciário, para melhorar o que está sendo tratado. A revitalização não é uma opção, mas uma necessidade e uma obrigação de todos para manter o rio vivo.
É otimista em relação ao futuro do planeta e da humanidade? Para onde caminhamos em termos de água e sobrevivência humana?
A produção de água doce está no seu limite de utilização. Estamos consumindo preocupação com a reposição. Toda a água consumida pela população de Belo Horizonte, por exemplo, não é produzida na capital e vem de fontes que se encontram em outros municípios.
De toda a água de chuva que cai na cidade, nenhuma gota fica aqui ou é armazenada. As chuvas renovam o estoque das águas, mas é o solo que as mantém e armazena. Sem cuidar dos solos, sem preservar as nascentes e sem áreas de matas protegidas não há como se pensar num futuro promissor para a gente. Não tem sentido separar gestão das águas de gestão do território. Se quisermos ter água de qualidade e em quantidade, teremos que fazer uma gestão ambiental muito mais responsável e sustentável. De nada adiantaram propagandas midiáticas falando que estamos salvando rios, pois as águas não mentem. A qualidade e a quantidade de águas dos nossos rios representam a nossa mentalidade civilizatória.
Neste mês, comemora-se o “Dia Mundial da Água”. Qual mensagem você deixaria para nossos leitores?
A água é um bem comum planetário e fonte inesgotável de vida, imprescindível para a manutenção dos ecossistemas e dinâmicas naturais e para a existência da humanidade. Para diferentes povos e crenças, esse recurso natural é sagrado e simbolicamente incorporado a rituais milenares e em constante reinvenção. As águas são naturalmente sistêmicas e límpidas.
Saciam a sede de todos os seres vivos. São ambientes de reprodução e evolução de diferentes espécies. Irrigam o solo e abastecem o subsolo. as diversas atividades da humanidade. São fonte de prazer no contato com ela ou contemplação e também inspiram poetas e planos de futuro. As águas são fontes de vida e saúde. E, por tudo isso, são patrimônio do planeta Terra e de todos os seres, bem comum e essencial à vida, um direito de todos e que não pode ser poluída, degradada ou mercantilizada. As águas e os rios são os patrimônios maiores de um povo. Uma civilização que mata as suas águas está matando a si mesma.
Fonte: Revista Ecológico
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