Da região onde foi encontrado o mais antigo fóssil humano das Américas – a Luzia, descoberta na cidade de Pedro Leopoldo, na gruta Lapa Vermelha, no sítio arqueológico de Lagoa Santa – partiram posicionamentos de revolta e tristeza pelo incêndio que destruiu o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, entre domingo (2) e ontem (3), onde se encontrava o esqueleto. Representantes dos Subcomitês vinculados ao Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas (CBH Rio das Velhas) se manifestaram com indignação.
Daniel Duarte, conselheiro dos Subcomitês Carste e Ribeirão da Mata, destacou a importância do fóssil e a consequente dimensão da perda. “Luzia, além de um incrível elo científico, também representa a identidade regional, servindo como uma importante ferramenta na difusão do conhecimento socioambiental nesta sensível área cárstica do Estado de Minas Gerais. Infelizmente, junto das possibilidades históricas de vida desta personagem, agora será contado o seu trágico desfecho”, disse.
Coordenador do Subcomitê Carste, Gefferson Guilherme disse acreditar que o incêndio ocorreu em decorrência do descaso da nossa gestão pública com as áreas do conhecimento científico/tecnológico, histórico e cultural. “Um país que não prioriza e valoriza o avanço da sua ciência e tecnologia, não valoriza e conserva seu patrimônio, sua história, seu passado, sua cultura, seus bens de importância mundial e para a história da humanidade, é um país fadado ao fracasso, ao colapso, a se permanecer em inércia, ao atraso, enfim, fadado a se privar de um futuro”.
À esquerda, ossadas de Luzia e a reconstituição do que seria o seu rosto. À direita, a região de Pedro Leopoldo, onde foi encontrado o fóssil. Créditos: Gregg Newton (Reuters) e Ohana Padilha.
Aluna do Projeto ‘Asas do Carste’, que desenvolve atividades de campo para monitoramento e observação de aves no ambiente cárstico junto a escolas públicas da região, Patrícia Silva também lamentou o ocorrido. “O país está órfão de parte significativa dos registros de suas memórias. Nossas riquezas foram maltratadas e agora a maioria delas virou pó”.
Conselheiro do Subcomitê Ribeirão da Mata, Rhaniel Veríssimo lembrou, em tom melancólico, a frase escrita no chão ao frente ao Museu Nacional: “Todos que por aqui passem protejam esta laje, pois ela guarda um documento que revela a cultura de uma geração e um marco na história de um povo que soube construir o seu próprio futuro”.Ele também afirmou que o mesmo descaso que acomete os museus e a cultura brasileira também afeta as estruturas ambientais de todo o país. “Antes das chamas dessa noite, o palácio-museu sofre há tempos sozinho e indefeso nas chamas da inércia, a mesma que incendeia e destrói matas, rios, grutas, monumentos, tesouros de toda ordem e consome qualquer possibilidade de acesso das gerações atuais e futuras a este capital cultural e intelectual”.
Na mesma linha, Rodrigo Lemos, do Subcomitê Ribeirão Arrudas, afirmou que não vê surpresa na tragédia que tomou o Museu Nacional, dada a redução vertiginosa no orçamento do Governo Federal em áreas como educação, ciência e tecnologia, cultura e meio ambiente. “Governar, em uma dimensão bem objetiva, é definir prioridades. Definir questões que são estruturais e estruturantes e que você quer afirmar, empoderar e trazer para o debate público. O desastre do Museu Nacional é anunciado. A morte da cultura, da educação e das estruturas ambientais no Brasil é anunciada, todo mundo percebe isso. O modelo, principalmente pós a PEC da redução de gastos [Proposta de Emenda Constitucional nº 55/2016, que cria um teto para os gastos públicos] para a cultura, meio ambiente ciência e tecnologia é de desmonte, na medida em que essas áreas não se mostram prioritárias para o governo”.
Professor da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), José Eugênio Figueira, também lamentou profundamente o ocorrido. “Sua queima [Luzia], 200 anos depois, expõe as entranhas de uma classe política de mentalidade necrosada pela corrupção, para a qual Museus, Escolas, Hospitais, Bibliotecas, Justiça e demais bens que educam, dignificam e enobrecem o homem, deveriam ser de acesso restrito, tal qual numa repulsiva sociedade escravocrata”, disse.
O incêndio de grandes proporções que começou na noite de domingo destruiu todo o interior do prédio, que tem três pavimentos e mais de 9 mil metros quadrados de área útil. O acervo contava com mais de 20 milhões de itens.
Outras manifestações de colaboradores dos Subcomitês em relação ao incêndio do Museu Nacional:
“A importância do incêndio do Museu Nacional será medido pelo vazio provocado no coração de todas as nossas ciências, história, cultura e patrimônio. No Médio Rio das Velhas, será sentido na Luzia reduzida a cinzas após seus 11,5 mil anos como primeira sul americana, e na história dos povos brasileiros que mais um vez foram incinerados. Dói no coração e dá ocos nos cérebros futuros”. (Procópio de Castro – Subcomitês Ribeirão da Mata e Carste).
“A AMAR (Associação dos Amigos do Museu Arqueológico da Região de Lagoa Santa), o Museu da Lapinha, guardião de fósseis originais do grupo Luzia, vem através desta nota manifestar sentimentos de pesar, indignação, revolta e vergonha pela perda de mais um Patrimônio Cultural de nosso País: o incêndio do Museu Nacional simboliza todas as perdas patrimoniais culturais que a Nação Brasileira vem sofrendo ha séculos. Irrecuperável o que se perdeu, assim, reivindicamos que esta tragédia não se repita nunca mais e que nossos governantes volvam olhares mais responsáveis, mais respeito e proteção aos Patrimônios Culturais bem como os Ambientais que ainda existem e correm risco igual”. (Erika Bányai – Secretária da AMAR).
“A destruição do mais antigo centro de pesquisas do Brasil foi resultado de anos de abandono não só do governo atual, mas de outros que o antecederam. A grande proporção desse incêndio evidenciou o descaso que vem ocorrendo há décadas, dinheiro público sendo direcionado a estádios de futebol, a regalias para políticos. Enquanto isso, a pesquisa no Brasil vai ficando para segundo plano. É lamentável presenciar a perda do acervo do Museu Nacional e ainda a perda de Luzia, o fóssil humano mais antigo das Américas”. (Ana Paula – Subcomitê Ribeirão da Mata).
“Acredito que este seja um momento de reflexão e concomitantemente de ação. A ação que sugiro é que nos reunamos para traçar estratégias e elaborar um documento “oficial” que conste a intenção, necessidades e preocupação de todos nós em relação a conservação do patrimônio cultural e científico, relevando o Museu Arqueológico da Região de Lagoa Santa em importância científica, cultural e principalmente, educacional” (Wenderson Cardoso – Subcomitê Carste).
“No ano em que o Governo Federal decide que a ciência não é importante, cortando uma gigantesca fatia de bolsas de pesquisa científica, perdemos Luzia. Num paralelo importante, o descaso com a pesquisa se traduziu, essa semana, com o incêndio que destruiu nosso maior acervo que estava no Museu Nacional da UFRJ. Mas perder Luzia não reflete só o descaso do governo para com as questões científicas. Reflete a inércia da população. Perdemos Luzia quando perdemos a noção da cidadania e deixamos os governantes tomarem decisões sem nossa participação. Perdemos Luzia todos os dias, desde que não cobramos uma postura ética e simplesmente ocupamos cadeiras em conselhos e comitês sem auxiliar na construção de trabalhos que possam solucionar os problemas. Pois é, perdemos Luzia… Perdemos Luzia quando só conseguimos enxergar e apontar problemas e não conseguimos ter a mesma força na busca de soluções. Luzia já se encontrava perdida há muito tempo. Se perdeu na lama e no incêndio. Perdemos Luzia num completo descaso em que perdemos o Velho Chico, seco em grande parte, sem vida… Perdemos Luzia na poluição que se alastra na Bacia do Velhas, no esgoto que mata, na poluição que destrói… Perdemos Luzia, quando perdemos o Ribeirão da Mata, quando ninguém se move para realizar suas ligações de esgoto, quando se joga lixo em sua beira, quando desmatam e ocupam suas margens… Ah se pudéssemos voltar no tempo e participar mais… Ah se fosse possível repensar cada erro em forma de solução. Ainda teríamos Luzia, ainda teríamos respeito não só por nossa história, mas por toda humanidade. Ainda teríamos forças pra recuperar nossos rios. Perdemos anos de pesquisas científicas, perdemos verbas, perdemos sonhos, perdemos a dignidade do nosso povo. Mas que tenhamos forças pra nos levantar e propor soluções imediatas para todos os problemas da nossa microbacia do Ribeirão da Mata”. (Germânia Gonçalves – Subcomitê Ribeirão da Mata).
Foto Destaque: Tomaz Silva (Agência Brasil)
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