O ritmo da modernidade tem nos levado a nos acostumar ao barulho dos carros e ao burburinho das ruas. O costume, a pressa, ou a velocidade do dia a dia faz com que a cidade desapareça e que nossa única relação com ela seja o deslocamento de um ponto a outro.
Habitamos a cidade, mas ao mesmo tempo a desconhecemos. No começo deste ano, Belo Horizonte registrou níveis intensos de precipitações, que trouxeram alagamentos e tragédias. Os rios canalizados reivindicaram seus espaços e se fizeram sentir como elementos que não podem ser ignorados. Muitos belo-horizontinos se surpreenderam com a reivindicação das águas.
Ao retornar para a capital mineira em 2006, a artista visual e professora do departamento de Artes Plásticas da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Isabela Prado, também experimentou um estranhamento, mas de outra ordem. Incômodos que permitiram a criação do projeto “Entre rios e ruas”, em desenvolvimento desde então.
De regresso à cidade natal, Prado não encontrou apenas a BH das suas lembranças, mas se deparou com transformações que se apresentavam como desenvolvimento. “Quando eu voltei para Belo Horizonte, vi o Rio Arrudas sendo tampado e isso foi para mim algo muito forte. Era um elemento importantíssimo da paisagem sendo apagado. Mexeu muito com minha percepção da cidade. E isso junto com as propagandas de divulgação desse tamponamento, que usavam a ideia da Linha Verde, que, em um primeiro momento, eu associaria a algo ambiental, positivo. Mas, na verdade, estavam vendendo a ideia de pegar sinais verdes e melhorar o fluxo dos carros. Achava aquilo sarcástico”, conta Prado.
Em contraste, ela comenta que uma ex-colega da Coreia do Sul, que também voltava para o país natal, deparou-se com a revitalização do rio Cheonggyecheon. Foi uma valorização do natural como forma de progresso que trouxe ainda mais inquietações para Prado sobre a situação de BH.
Um projeto que nasce do afeto
Uma relação de afeto com a cidade e os estranhamentos ao retornar fizeram com que Isabela começasse a tentar entender como se dá a organização dos documentos e mapas da cidade. “Eu comecei uma pesquisa mais com os mapas da prefeitura que tinha acesso público e comecei a entender essas codificações do que está em córrego, leito natural, canalizado aberto, canalizado fechado e entender essa dinâmica dentro da cidade”.
Prado começa, então, a percorrer os córregos da cidade de madrugada, buscando evitar o barulho dos carros, e coletar os áudios das bacias da região central da cidade, afluentes do Arrudas. A artista explica que era uma tentativa de fazer tangível a vida dos rios urbanos, que continuam se expressando mesmo que ocultados pelo ruído cotidiano.
A partir daí, ela começa a pensar em estratégias plásticas possíveis, usando as informações disponíveis como elementos expressivos para a construção de obras que pudessem sensibilizar ao espectador sobre a relação da cidade com os córregos.
Vivendo entre Rios e Ruas
Do olhar sensível e da necessidade de entender e discutir a relação que temos estabelecido com a cidade e com sua paisagem natural surgiu então o projeto “Entre Rios e Ruas”. No trabalho, Prado dá protagonismo aos rios que se fazem visíveis no meio do planejamento da cidade que se empenha em escondê-los, em apagá-los.
O Mapa mofo foi a primeira expressão do trabalho da artista. Morando num apartamento localizado sobre o córrego da Serra, Prado se depara com o mofo nas paredes. O rio se empenhava em crescer em outros lugares, em se fazer visível para ela, em se mostrar inclusive na sua própria casa.
Isabela foi notando que o mofo que invadia seu apartamento foi criando rachaduras, narrativas de histórias livres, mapas que se expandiam, criando e apagando fronteiras. O branco da parede foi se misturando com outras cores, a superfície deixou de ser lisa, o rio se desenhava e se fazia vivo no meio dos tijolos. Essa experiência deu origem ao vídeo Mapa mofo (2007-2012), onde se pode evidenciar as variações do mofo através do tempo.
A partir daí o projeto Entre Rios e Ruas tem incluído uma série de fotografias, vídeos, performances e instalações que tem passado por diversas cidades.
Outra das ideias da artista é a performance “Lição: nessa rua tem um rio”. Uma estratégia didática que envolve uma sequência de aulas de violino em ruas sob as quais correm trechos dos córregos da capital. A intenção é estabelecer uma metáfora sobre o esforço de tocar o violino e aquele de plantear uma nova relação com a cidade e o meio ambiente.
Sensibilização que muda a relação com a cidade
De acordo com a professora, mesmo sem ter mudado muito a situação e continuado o encaixotamento do Arrudas, agora existe uma maior sensibilização da sociedade para essa questão. “Essa relação da cidade com os córregos, com a impermeabilização dessas áreas urbanas, na minha percepção, passou a ter uma importância maior como pauta, como questão a ser pensada e a ser cuidada”, afirma Prado.
Como menciona a artista, o “Entre rios e ruas” não perde relevância com o tempo. Pelo contrário, ele cobra importância com os acontecimentos de cada ano, o que permite ter uma continuidade e o desdobramento de outros trabalhos. “Através dos trabalhos, a gente consegue uma sensibilização do público para ter mais consciência, para eventualmente conseguir mais noção dessa capacidade de escolha, de definição de leis, de regras” conta.
Prado detalha que as pessoas em contato com a obra reconhecem a importância do tema e, algumas vezes, ficam surpreendidas por não saber dessas informações ou não ter uma relação com aquela paisagem submersa.
Placas sobre os rios
Também como desdobramento do “Entre rios e ruas”, em 2018, Isabela Prado iniciou o projeto “Sobre o Rio”. Contemplada pela Lei Municipal de Incentivo à Cultura daquele ano, a proposta busca inserir placas de sinalização dos córregos canalizados da cidade, inspiradas nas placas de ruas e avenidas. Em janeiro de 2020, foi concluído o mapeamento dos pontos a serem sinalizados, começando pelo centro da cidade. Para conhecer mais, basta acessar o perfil de Instagram @EntreRiosERuas
Rios visíveis na CMBH
A discussão sobre a relação entre a cidade e os rios urbanos também se fortalece, este ano, na Câmara Municipal de Belo Horizonte (CMBH). No último dia 21, foi protocolado um projeto de lei para fixar placas informativas em locais por onde passam rios e córregos da cidade. A proposta pretende espalhar, em uma distância máxima de 50 metros, totens com nomes e informações acerca da existência e características dos cursos d’água da cidade por ruas e equipamentos públicos. Idealizado pelo vereador Gilson Reis (PCdoB), o objetivo é “criar uma nova consciência coletiva acerca dos cursos d’água” e “influenciar medidas futuras em relação ao planejamento urbano-ambiental do Município, no sentido de tornar a relação homem/natureza mais harmoniosa no âmbito de nossa cidade”.
Assessoria de Comunicação CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
*Texto: Ennio Rodrigues
*Fotos: Divulgação
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