Texto: Alessandro Borsagli
Alessandro Borsagli é bacharel em Geografia pela PUC Minas. Pesquisador atuante nas áreas relacionadas ao espaço urbano com ênfase em geografia urbana e história das cidades (memória urbana), no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, de urbanização e requalificação do espaço. Autor do site www.curraldelrey.com, destinado à discussão sobre as mudanças ocorridas no espaço e na paisagem urbana de Belo Horizonte, desde a fundação do arraial do Curral del Rey, no Século XVIII, passando pela construção da nova capital no final do Século XIX até os dias atuais, com ênfase na abordagem histórica, na geografia, no desenvolvimento urbano, na arquitetura e requalificação do espaço.
Desde criança eu ouvia histórias sobre os córregos de Belo Horizonte, de como eram limpos a ponto de ser possível visualizar, a partir da ponte da Rua Tupis, os peixes subindo o córrego do Leitão, de poder pescar e nadar no ribeirão Arrudas, onde meu pai e meu avô pescavam Bagres e nadavam nas proximidades do Prado e como meu pai levando as encomendas feitas pelo Sr. Armando Souza Pinto, produzidas pelo meu avô, um hábil seleiro, caminhava pelas águas desde a Lagoinha até a Fabrica de Chita (104 Tecidos) observando os caramujos em meio às pedras por onde corriam as águas virtualmente límpidas. Uma realidade tão viva para uma geração em vias de desaparecer, porém tão distante para mim, um garoto nascido em uma metrópole e que não compreendia como poderiam existir rios sob o asfalto, ao mesmo tempo em que olhava para o Arrudas, então em obras de canalização entre os bairros de Santa Efigênia e Santa Tereza, onde tive a felicidade de passar grande parte de minha infância e adolescência.
Com o passar dos anos, fui compreendendo o motivo das canalizações, onde as explicações e justificativas apresentadas eram sempre as mesmas: enchentes, trânsito e poluição, como se as tão celebradas avenidas sanitárias fossem a solução para as mazelas urbanas causadas pelas águas, poluídas e encerradas em um leito de concreto. A cada avenida sanitária inaugurada, agora nos confins do município e região metropolitana, celebrava-se a utópica solução propagada pelos meios de comunicação e prontamente absorvida pela sociedade. As explicações não vinham apenas do poder público, mas também por grande parte da população que ainda enxerga a canalização como solução única e necessária para tais problemas.E cético, não entendia como que as avenidas nos fundos de vale se enchiam nas trombas d’águas presenciadas por mim na década de 1990, na Avenida Prudente de Morais, enquanto andava de bicicleta. Não era para as canalizações resolverem o problema? Queria entender todo o processo, mas o acesso às informações era difícil, muito difícil.
Aliado a esse fato, ainda havia a repercussão negativa sempre que ocorriam acidentes envolvendo os cursos d’água, em particular o Arrudas, palco de inúmeras tragédias viárias de automóveis e coletivos gerada por imprudência ou embriaguez dos motoristas e de terceiros que acabavam terminando dentro do ribeirão, contribuindo significativamente para a hidrofobia em relação às águas urbanas da capital, como se as águas estivessem no lugar errado e na hora errada. E a especulação imobiliária, ao longo dos 117 anos de existência de Belo Horizonte, cooperou para a segregação e ocupação irregular das margens dos cursos d’água pela população menos abastada, cujas terras eram vistas como reserva de mercado. É inquestionável a pressão urbana exercida sobre os rios marginalizados pelos governantes e pela sociedade.
Esq.:Obras de canalização do Córrego do Leitão, em 1930, onde hoje se encontra a Avenida Prudente de Morais
Dir.: 1963 – Ribeirão Arrudas aberto na Avenida dos Andradas, mas não em leito natural
Embaixo: 2015 – Ribeirão Arrudas encoberto pelo Boulevard Arrudas a Avenida dos Andradas
No ano de 2008, iniciei as pesquisas sobre o processo de desenvolvimento de Belo Horizonte, com ênfase nos elementos naturais, no qual pude constatar que existem sob os nossos pés uma imensa caixa d’água, desprezada e transformada em imensos emissários de esgotos. De todo esse trabalho resultaram diversos artigos e publicações no blog Curral del Rey (www.curraldelrey.com), com a finalidade da disseminação do conhecimento da nossa história e promover o resgate da memória urbana, esquecida, desaparecida e encaixotada por toda a cidade.
Pragmaticamente, estamos passando pela mais grave crise hídrica da história do sudeste do Brasil, fruto do mau planejamento e gestão nula em relação às águas, dos interesses econômicos e políticos em detrimento a demanda da sociedade e de uma ideia ecossistêmica do papel da água no meio ambiente, além do desconhecimento dos fenômenos naturais e cíclicos que ocorrem em um âmbito local, regional e global, resultado da concentração de poder nas mãos dos burocratas acéfalos, que agem por instinto, principalmente econômicos e da própria sociedade.
Apesar do inevitável racionamento e do esgotamento iminente dos recursos naturais, consequência do modelo de desenvolvimento adotado pela sociedade, nada de concreto foi realizado, principalmente em relação às águas urbanas, largamente utilizadas como instrumento politico e esquecidas após o seu encaixotamento, ignoradas não só pelos administradores, órgãos públicos e não governamentais, mas também por diversos ambientalistas que vislumbram na crise atual a chance de alçarem na política e atingir seus objetivos. É importante a compreensão de que temos uma imensa caixa d’água sob nossos pés, cerradas sob o concreto e o asfalto da urbe mineira e que, infelizmente, esse não é o objetivo das incompetentes administrações municipais responsáveis pelo estrago, ao legarem às águas urbanas o penoso trabalho de conduzir os esgotos para fora da metrópole. Nesse contexto, faz-se necessário o conhecimento do que está sob o asfalto das vias e o concreto dos edifícios e canais, visto que a maior parte das águas urbanas está escondida há quase duas gerações.
Esse conhecimento do passado e do que foi perdido, à custa de um suposto desenvolvimento, nos permite exigir mudanças do poder público que continua a tratar os elementos naturais da mesma maneira que seus antepassados corrompidos pelo cunho pseudomodernizador e pelo capital. Daí partiu a ideia do livro “Rios Invisíveis da Metrópole Mineira”, lançado em fevereiro de 2016.
Esq.: Cachoeira do Córrego Acaba Mundo no Parque Municipal de Belo Horizonte em 1904
Dir.:Córrego Acaba Mundo na Avenida Professor Morais, em frente a Colégio Sagrado Coração de Jesus em 1963
Embaixo: Ribeirão Arrudas atrás do Parque Municipal em 1929
No livro abordo alguns dos principais cursos d’água que nascem e atravessam as zonas urbana e suburbana de Belo Horizonte, todos pertencentes à bacia hidrográfica do ribeirão Arrudas. Esses rios, por atravessarem a zona urbana planejada pela CCNC, figurando em praticamente todas as plantas confeccionadas, nas quais se concentravam a maioria dos aparatos administrativos, do comércio, educação e de serviços desde 1897, ano da inauguração da capital e a zona suburbana, a qual abrigou grande parte da população belorizontina nas primeiras décadas da nova capital, apresentam uma farta documentação disponível para a realização das pesquisas, além de inúmeras imagens que nos permitem visualizar as mudanças na paisagem ao longo das décadas. A região central (primitivamente denominada bairro comercial) de Belo Horizonte se encontra inserida nas microbacias dos córregos do Leitão, Acaba Mundo e Serra, integrantes da bacia do ribeirão Arrudas, zona prioritária para o poder público para a instalação e manutenção dos equipamentos urbanos necessários para o funcionamento da cidade e dos espaços públicos. A zona suburbana, a “cidade real” receberia maior atenção do poder público somente a partir da segunda metade da década de 1920.
Apesar de Belo Horizonte ter sido conhecida pelo seu clima ameno e pela quantidade de matas, nascentes, riachos e córregos, uma verdadeira “Cidade Vergel”, essa visão bucólica dos cursos d’água completamente limpos nas primeiras décadas de existência da capital mineira é desconhecida por grande parte da população atual. A grave situação sanitária que assolou a cidade desde a sua inauguração, na qual o Arrudas e os seus afluentes já recebiam considerável quantidade de esgotos domésticos e das pequenas industrias instaladas na capital deve ser considerada pois, apesar de sempre ter recebido essa nefasta contribuição, eles não estavam mortos e enterrados. Por muito tempo, a cidade respirou ares interioranos e a captação de esgotos sanou parcialmente o problema na zona planejada, entre o final da década de 1920 e 1950, no qual a população presente conheceu uma cidade atravessada por córregos cristalinos com vida aquática, porém não livres de poluição.
Dessa forma, o livro pretende resgatar por meio de uma viagem no tempo o desconhecido e refletir o quanto os elementos naturais foram afastados do nosso convívio e como ainda podemos reinseri-los em nossas vidas, quebrando paradigmas impostos e melhorando não só a nossa existência, mas também as das gerações futuras.
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